Teatrinho
PERSONAGENS:
- UM GOVERNADOR CONSISTENTE
- UM COMANDANTE DE POLÍCIA
- SERVENTUÁRIOS com o Pior Salário Do Brasil
- CIRCO MIDIÁTICO
- UM PALHAÇO com credencial
- UMA LOGORRÉICA de microfone na mão
- UM DIRIGENTE de grande clube da capital
- UM CONSELHO REGIONAL
- UM POSTE
- CORO
- UM RAPTOR
- UM HOMICIDA
- VÍTIMA
- OUTRA VÍTIMA
- SAN GENNARO
- PLUFT, O FANTASMINHA
CENÁRIO
Periferia da Grande São Paulo, CDHU habitualmente ignorado.
RAPTOR invade apartamento de VÍTIMA.
Há calorosas recepções e decepções de parte a parte.
RAPTOR encrespa. Mostra o cano.
OUTRA VÍTIMA tenta arguição; não logra sucesso. O .22 fala mais alto.
UM COMANDANTE DE POLÍCIA tenta negociar o fim do sequestro.
UM CONSELHO REGIONAL tenta negociar o fim do sequestro.
UM DIRIGENTE tenta negociar o fim do sequestro.
São impedidos pelo GOVERNADOR CONSISTENTE.
ATO ÚNICO
CENA ÚNICA
BILHETE ÚNICO
Eis, sem mais delongas:
RAPTOR: Agora estou no controle. Agora possuo a fêmea, que se compraz de sua situação de vítima!
VÍTIMA: Eis o bufão! Achas que o poder traduz-se numa imposição? Pois sim, ó Raptor! Não podeis atuar em outro papel senão o do pífio com voz de piparote!
RAPTOR: A vítima não vê que possuo um falo de chumbo? Se comando o gatilho, eis que comando nossos destinos!
VÍTIMA: E o reforço que gozas não passa de objeto inanimado? E o controle de teu destino não passa de objeto inanimado? Ora, que um judeu coma a carne do mais imundo dos suínos no quinto dia de Chanucá antes de entregar meu destino a tão frágil ameaça!
OUTRA VÍTIMA: Ai, que o homem nos mata!
VÍTIMA: Não mata, eis que não tem forças!
RAPTOR: A vítima não entende? Seu reinado sobre minh'alma terminou, e terminou debaixo de chumbo! Agora, mando eu!
VÍTIMA: Não manda!
RAPTOR: Mando!
VÍTIMA: Não manda nem desmanda, segura a bomba!
OUTRA VÍTIMA, para a platéia: Ai, que o homem me mata! Ai de mim! Ai que o ideal infantil permeia a fala, e os dois não perdem chance de tatibitate!
RAPTOR, de .22 em punho: Eis o falo opressor! Acaso, Vítima, não padeces de medo? Acaso, vítima, não é esse o meio de comando? Não é esse o símbolo da eterna dominação do macho sobre a fêmea?
VÍTIMA: Mas é um fanfarrão! Andaste, pois, lendo gibi demais? Vendo filme de caubói demais? É demasiado tolo o que imagina ser a extensão do pênis um substituto ao próprio! Trêmulo, é como o vejo, tanto no leito quanto na vertical!
RAPTOR: Tua fala esconde o xeque; tua goela tenta inutilmente te safar da cimitarra que lhe encosto!
OUTRA VÍTIMA, para San Gennaro: Ai, meu San Gennaro! E como argumentar com esse fato?
SAN GENNARO, incorporando Zélia Gattai: Quando la forza contrasta la ragione vince la forza perché la ragione non basta.
OUTRA VÍTIMA: Ai de todos, então, pois se à lâmina fria da razão sucede ataque bestial!
SAN GENNARO: Mas eis que vêm lá um Comandante de Polícia e Serventuários! Haverá essa representação contida da força bruta de por fim a este solilóquio a dois? Oremos...
COMANDANTE DE POLÍCIA: Ordem e Progresso! Cá estamos, por direito divino e indicação do Governador Consistente para resolver este imbróglio! Serventuários?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Não é necessário gritar, o microfone da Logorréica é forte o suficiente!
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Mas hein? O Bom Deus há de perdoar minha falta de fé nos seus desígnios a meus trogloditas de uniforme, mas há algo de errado em brindar Seus filhos com dureza de físico E de cérebro! Porém, vejamos o que a situação nos traz! Serventuários?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Eis que cá estamos! À solução, pois! Trouxeram o copo?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Trouxeram o manual de negociação em 10 lições?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: O explosivo, creio eu que está convosco?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: O lenço branco da trégua e paz, aí está?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Pois então nem o próprio Deus pode nos impedir a glória do sucesso! Mas, ALTO! Quem vem lá?
CONSELHO REGIONAL: É o Conselho Regional, pois estamos mais preparados para lidar com situações de estresse! Ô, abre-alas!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Se há algo que minha boa mãezinha me ensinou é a nunca fugir da briga! Mas vejamos o que a Razão pode fazer contra a Força, embora a vitória desta me pareça inevitável. Serventuários?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Ô, abre-alas que o Conselho quer passar!
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Conselho, pois o caso é teu. Ao menos até que a Razão ouça a si mesma e peça arrego em prol da Força institucionalizada.
CONSELHO REGIONAL: A oferta do nobre comandante é boa; a falta de fé, nem tanto. Mas eis que um morcego-vampiro nos sobrevoa a todos! Por certo quer nos sugar o sangue! Acudam!
- plim - O morcego-vampiro se transforma em meio à fumaça fétida, revelando o Governador Consistente que a tudo observava
GOVERNADOR CONSISTENTE: PAREM TUDO! NÃO ME LEMBRO DE TER PREENCHIDO UM CHEQUE DE QUINHENTOS DÓLARES!
PALHAÇO: Governador, este é o caso da Eloá, não da Liga Amadora de Boliche!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Ora, mas isso é brincadeira de tolice! Poderia eu ter me enganado?
CIRCO MIDIÁTICO: NÃO! NUNCA!
NA FORÇA DO SENHOR EU VOU CONQUISTAR!
NA FORÇA DO SENHOR EU VOU AVANÇAR!
NA FORÇA DO SENHOR EU VOU EDIFICAR A TI SENHOR!
- plim - repetem o refrão três vezes, como quem bate na madeira. O Coro torce o nariz, mas acompanha mesmo assim.
GOVERNADOR CONSISTENTE: O Palhaço transpareceu meu erro! CORTEM-LHE A CABEÇA! Eis minha vontade, mas mantenham a fantasia que outro correrá a vesti-la!
- plim - o Circo Midiático esquece a consciência de classe e, de dossiê falso na mão, corre a executar a ordem do Governador. O Coro torce o nariz, mas acompanha mesmo assim.
GOVERNADOR CONSISTENTE: Resolvido o percalço, vamos ao caso da Vítima, doravante chamada de Liga Amadora de Boliche. A providência elementar é ficar longe da porquinha!
- plim - o Circo Midiático se apressa a apresentar ao Coro um infográfico que explica as declarações do Governador Consistente. O Coro torce o nariz, mas acompanha mesmo assim.
COMANDANTE DE POLÍCIA: Governador, está aqui um Conselho Regional que diz ter a solução pacífica para o caso da Liga Amadora de Boliche. Eis!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Circo Midiático, já é Horário Nobre?
CIRCO MIDIÁTICO: SENHOR! SIM, SENHOR!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Então, escafeda-se com o Conselho Regional! A oportunidade de agir de modo grotescamente irresponsável porém estranhamente popular se avizinha! À Força! O Conselho Regional é empecilho! CORTEM-LHE A CABEÇA!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Não podemos, eis que não são pretos, pobres ou putas! E moram em feudos eleitorais de vosso Poste!
POSTE: Eu fiz o Cidade Limpa!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Atenha-se ao seu texto decorado, Poste. Quanto ao Conselho Regional, o Circo Midiático pode calar-lhe simplesmente sonegando-lhe a voz! Estou certo?
CIRCO MIDIÁTICO: SENHOR! SIM, SENHOR!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Excelente! Prossigamos, pois, que o Raptor não tem o dia todo!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Mas ele está entrincheirado a semana toda!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Estou ouvindo um marronzinho? Um burocrata de delegacia?
COMANDANTE DE POLÍCIA: SENHOR! NÃO, SENHOR!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Excelente! Pois que tempo é dinheiro, especialmente no Horário Nobre! Ponha à ação suas legiões!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Serventuários?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Pau na máquina!
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Mas eis que me aparece um senhor de paletó! Que dizeis?
DIRIGENTE: Sou dirigente do clube de futebol pelo qual o raptor demonstrou predileção! Posso tentar negociar?
COMANDANTE DE POLÍCIA: O que me diz Governador?
GOVERNADOR CONSISTENTE: O que me diz Circo?
CIRCO MIDIÁTICO: NÃO! NUNCA! FUTEBOL É NA QUARTA DEPOIS DA NOVELA E NO DOMINGO DEPOIS DA LOGORRÉIA!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Negativo, Dirigente!
DIRIGENTE: Ah, qualé! Sou do mesmo partido político de seu poste!
POSTE: Eu fiz o Cidade Limpa!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Cale-se, Poste, ou eu arrumo um dossiê contra você!
Cale-se, Dirigente, não é a teu clube que sou crente!
Aliás, o que pensa este rapaz? (aponta a si mesmo)
Comandante de Polícia?
COMANDANTE DE POLÍCIA: SENHOR! SIM, SENHOR!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Tá com o copo aí?
COMANDANTE DE POLÍCIA: SENHOR! SIM, SENHOR!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Então use-o! A Logorréica está com o microfone a postos?
LOGORRÉICA: Meu instrumento de trabalho está à disposição de vosso usufruto, como bem entendeis de usá-lo!
GOVERNADOR CONSISTENTE: Então a casa caiu pro Raptor! Eleições municipais, aí vamos nós! Comandante de Polícia?
COMANDANTE DE POLÍCIA: SENHOR! SIM, SENHOR!
GOVERNADOR CONSISTENTE: TÁ NA HORA DO PAU!
CORO: Ohhhhhhhhh!
Ohhhhhhhhh!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Cidadãos, eis a ação da Polícia! É a espetacularização de uma situação facilmente resolvível, mas Deus sabe como me sinto macho ao comandá-la! Serventuários?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: TÁ NA HORA DO PAU!
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Vamos às 10 lições: blá blá blá, se o "suspeito" não obedecer, proceder à tática de invasão tática! Serventuários?
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Encostem o copo na porta! Examinem a situação de dentro em detalhes! Quero relatórios de cinco em cinco minutos, na hora do intervalo da Logorréica! Posicionem o explosivo! Não se esqueçam de usar o lenço branco para dizer que invadem e sentam a bordoada em paz!
SERVENTUÁRIOS: SENHOR! SIM, SENHOR!
- plim - Uma explosão. Outra explosão. A porta não cede. Fumaça! O chefe da Logorréica reclama que a cena não está nítida e manda borrar o logotipo duma garrafa de suco que não anuncia em seu Horário Nobre.
SERVENTUÁRIOS: PA-RA-NÁ PA-RA-NÁ PA-RA-NÁ
- plim - Eis que sai do apartamento, debaixo de safanões, o Raptor. Visivelmente atordoado, grita.
RAPTOR: LIGA AMADORA DE BOLICHE! EU TE AMO! LIGA AMADORA DE BOLIIIIIIIIICHE!
- plim - O Raptor, doravante Homicida, é jogado dentro de um camburão. A Vítima, doravante Pluft, o Fantasminha, observa seu corpo inerte sendo carregado feito um saco de batatas.
PLUFT, O FANTASMINHA: Eis que minha história termina aqui, de maneira trágica, cuja única vítima não é outra senão eu mesma. Vamos ouvir as justificativas do Comandante de Polícia para suas trapalhadas, já que o Governador Consistente escafedeu-se para a Suíça, para vender banana a quilo!
COMANDANTE DE POLÍCIA: Ouvimos um tiro e tentamos uma discreta invasão. Infelizmente, o PT e a CUT estiveram aqui e nos afanaram o grampo que íamos usar para abrir a porta! Ah, não fosse isso!
CIRCO MIDIÁTICO: É TUDO QUE PRECISAMOS OUVIR! UMA FRASE SEM SENTIDO, MAS COM APELO REACIONÁRIO! A ELA NOS APEGAREMOS ATÉ QUE A ÚLTIMA ESTRELA CAIA!
LOGORRÉICA, solando: ATÉ QUE A ÚLTIMA ESTRELA CAAAAIAAAA!
CORO torce o nariz, mas acompanha mesmo assim: Ohhhhhhhhh!
Ohhhhhhhhh!
PLUFT, O FANTASMINHA: AI DE MIM! Eis que me encontro em companhia de San Gennaro: um coma andante, vítima de um Comandante e do corno dantes! AI DE MIM! Qual é a moral da história? O blefe foi alto e a experiência pouca. E, como se sabe, a jogatina é proibida no Brasil.
FIM (da picada...)