Comentários sobre as recentes arbitrariedades, de um promotor do MP:
A POLÊMICA DA ‘RAÇA’
Promotor de Justiça pede anulação da sentença contra Emir Sader
Recurso do promotor de Justiça Renato Eugênio de Freitas Peres, do Ministério Público de São Paulo, diz que o processo movido pelo senador Bornhausen contra o professor Emir Sader sequer deveria ter sido acolhido em tribunal.
Flávio Aguiar – Carta Maior
SÃO PAULO – O promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Renato Eugênio de Freitas Peres, entrou com recurso junto ao juiz de Direito da 22ª Vara Criminal de São Paulo, Rodrigo Cesar Muller Valente, que condenou o professor Emir Sader a um ano de detenção e a perda do seu cargo na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), pedindo anulação da sentença.
O parecer emitido pelo promotor historicia o caso desde o seu
início. Para pedir a anulação da sentença, o promotor afirma que há
incongruência, inadequação e inconsistência na decisão. Começa dizendo que a sentença contra o réu destoa completamente de outras sentenças, praticadas inclusive na 22ª Vara, em face de acusações muito mais graves, como tráfico de entorpecentes, furtos qualificados e outros.
“Assim vislumbra-se que no presente caso o professor universitário querelado foi condenado com pena de igual duração àquela que alguns juízes pretendem conferir a traficantes. Houve um tempo que chamavam situações como esta, no direito, de teratológicas”, escreve o promotor. “Mas não é só”, continua. “Como pode agora um professor universitário ser condenado por expressão de opinião?”
Manifestando perplexidade, o recurso diz que “em quinze anos de
carreira” o promotor nunca teve conhecimento de uma condenação por crime contra a honra, inclusive na 22ª Vara. E reclama que já apresentou seus argumentos por ocasião desse julgamento em primeira instância, mas que pelo visto “sequer foram apreciadas as questões suscitadas”, motivo pelo qual vai reapresentá-las. E diz: “É sabido que muitos Juízes dizem que sequer lêem o que escreve o Ministério Público”.
A partir daí o promotor declara que a queixa-crime sequer deveria ter
sido recebida em juízo, em primeiro lugar por não ser precisa na
qualificação do suposto crime cometido, se era de injúria, calúnia ou
difamação. Acrescenta que o juiz acabou desconsiderando as acusações de “calúnia” e de “difamação”, só aceitando a de “calúnia”, e que nisto houve erro de juízo. Ou seja, o recurso desqualifica a própria
conceituação com que o juiz encarou o processo.
Depois, o parecer aponta uma série de erros cometidos pelos acusadores e pelo próprio juiz. Não houve oferecimento de oportunidade de retratação, obrigatório pela Lei de Imprensa que foi o instrumento da condenação. Deveria também haver oferecimento de oportunidade de reconciliação entre as partes, de explicações, não houve intimação das testemunhas de defesa, enfim o processo teria se tornado um rosário de equívocos, o que justifica o recurso:
“Por todos estes motivos, opina a Promotoria de Justiça no sentido de
que seja declarada a nulidade do processo, com rejeição da Queixa-crime (por inépcia e falta de condições processuais, leia-se adequação do pedido)”.
Mas o parecer não pára por aí. Além de considerar os erros processuais, entra no mérito da questão. E é taxativo: “trata-se aqui de uma disputa ideológica. Nenhuma das partes é um criminoso”. E vai ao âmago do problema, quando diz que se o professor chamou o senador de “racista”, “não há controvérsia sobre o fato de que o Exmo. Senador da República lançou mão da expressão 'a gente vai se ver livre desta raça'”.
“Assim só podemos concluir que efetivamente o Excelentíssimo Senhor
Senador tem o hábito de utilizar o conceito de raça, ou algum conceito
de raça. E infelizmente ele o fez num contexto em que manifesta a
expectativa de '...se livrar da tal raça'”. Pergunta o parecerista: como deveria reagir alguém que ouvisse tal frase, e fosse “de origem diversa daquela do ex-governador 'Barriga-verde'”? Deveria ouvir calado o que também pode ser caracterizado como uma “ofensa”.
Diz ainda que os advogados do senador argumentaram que ele sentiu-se
ofendido por adjetivos como “repulsivo, racista, fascista, mente suja,
abjeto, mesquinho, desprezível”, mas que de toda essa coleção só a
expressão “racista” poderia ser objeto de querela judicial; e que as
demais denotam a existência de um debate “acalorado”, como as que são
características daqueles entre “direita esquerda”.
Diante do argumento da acusação de que o réu deturpou o sentido da
expressão “raça” usada pelo senador, diz que “até mesmo pela confusão
resultante, temos que concluir então que a declaração permite o mau
entendimento”. Conclusão: “não há prova de dolo criminal”, ou seja, de
intenção criminosa.
Por fim, o promotor arremata dizendo que o efeito colateral da aplicação da sentença, de perda do cargo de professor em universidade pública é “exacerbada” e que “a aparência da peça nos remete às condenações da época do regime militar. Até as personagens no palco são as mesmas”. “Há apenas uma diferença: na época do governo militar havia sursis”, isto é, a possibilidade da suspensão da pena. Agora, nem isto houve.
Clique aqui e leia o parecer do Ministério Público na íntegra.
Opinião da Carta Maior
O resumo desta consistente peça jurídica é o de que tudo isto, a
queixa-crime, o julgamento, a pena, a perda do cargo público, é um
completo absurdo de qualquer ponto de vista que se queira examiná-lo, é uma tentativa de cercear o debate político. E que apoiar esta verdadeira comédia de erros, como fizeram várias vozes na mídia impressa e audiovisual, é um atentado à liberdade de expressão. Resta saber se o mesmo eco vai ser dado, nesta mídia, a este parecer exarado a partir do Ministério Público.
Quanto a nós outros, lembremo-nos: agora foi o professor Emir. Amanhã, pode ser qualquer um.
E da própria vítima:17/11/2006
Um samba popular
Vozes da imprensa aparecem para atacar-me tentando manchar minha trajetória e minha atuação política e intelectual. Indago: por que eu, de repente, sou projetado à pauta da imprensa? Sempre tratei de pautar minha atividade de forma discreta, pois acredito que o mais importante são as idéias e as possibilidades de diálogo com as forças sociais, políticas e culturais, em defesa de um outro mundo possível.
Indago também: por que o editor de Política da Folha de S. Paulo utiliza dois artigos seguidos sem sequer escutar as pessoas que ataca? Ele, que escreve uma vez por semana, se deu ao trabalho de utilizar a metade dos artigos que publica no mês para tentar me desqualificar, levantando ataques infundados e com linguagem grosseira – no que foi acompanhado por uma colunista do caderno de cidades.
Nenhuma solidariedade diante do processo do presidente do PFL, apenas ataques. Que se voltaram também contra a Boitempo e sua editora, Ivana Jinkings, cujo trabalho editorial é reconhecidamente de alta qualidade, com a publicação de alguns dos melhores autores nacionais e estrangeiros, em meio a um universo completamente comercializado e mercantilizado.
Por que a imprensa opta por essa pauta, quando deveria estar preocupada em fazer um balanço autocrítico da pior cobertura – e a mais violenta – de uma campanha eleitoral? Vendo que as suas “verdades” não foram aceitas pela maioria, por que não abre um período de reflexão e de debate para compreender os motivos que levaram os leitores a se apoiarem na mídia alternativa?
Uma parte importante da resposta a essas interrogações certamente pode ser encontrada na constatação evidente de que ela perdeu a capacidade que julgava ter de “fabricar consensos” – na expressão de Chomski –, definindo a pauta sobre o que o país deve discutir, decidindo a versão e elegendo os bons e os maus em cada tema.
No lugar de uma justa cobertura, optou por reviver um anacrônico lacerdismo, com insinuações golpistas, ecoando a exortação de que estava na hora de o poder voltar às mãos tucano-pefelistas antes mesmo do sufrágio popular, no pior estilo da imprensa que preparou a opinião pública para o golpe militar.
E incomodam, sobretudo, as manifestações de apoio que recebemos – não pessoalmente, mas como vítima daquele processo –, a ponto de que os artigos mencionam o manifesto, mas o jornal, reiterando a linha de editorializar todo o noticiário, nunca o publicou ou se referiu à extensão desse apoio – chega a 15 mil assinaturas – ou ao peso dos que o assinam.
Fosse pela Folha, os seus leitores não saberiam que manifestaram sua solidariedade pessoas como Antonio Candido, Chico Buarque, Luis Fernando Veríssimo, Francisco de Oliveira, Eduardo Galeano, Perry Anderson, István Mészáros, Leonardo Boff, entre tantos outros.
Ao que tudo indica, incomoda que um personagem a quem querem desqualificar com linguagem indigna de qualquer debate de idéias receba solidariedade tão ampla e qualificada, enquanto os articulistas têm de se limitar a extremismos verbais e a carreiras sem nenhuma presença intelectual, com artigos descartáveis.
O mais importante é que algo novo acontece no Brasil, e os setores conservadores resistem a aceitar. Não possuem mais o monopólio do discurso e agora tem de dividir o espaço com a imprensa crítica, como Carta Capital, Carta Maior, Brasil de Fato, Caros Amigos e tantas outras publicações que formam o público-leitor, assim como vários blogs que trabalham nessa mesma direção.
Ataques pessoais fazem parte dessas tentativas de desqualificação, para tentar mostrar que não haveria nenhum comportamento possível que não o da submissão aos interesses criados, que fizeram do Brasil o campeão mundial da desigualdade. A existência de um pensamento que sustenta esse quadro social somente será abalada com transformações que atinjam os privilégios seculares dos setores protegidos pela mídia oligopolista.
O processo e o ataque desses setores embutem um recado: todos os que mantiverem o pensamento crítico e autônomo podem sofrer pesadas conseqüências, da desqualificação à perda do cargo obtido por concurso e mesmo à prisão. É um recado também para a universidade pública: silenciem!
Os esclarecimentos das acusações feitas por essa nova direita – com cheiro claramente bushista, de pensamento único – podem ser encontrados na página do projeto Outro Brasil.
Os chacais – como os chamava Julio Cortázar – seguirão atacando, mas a caravana passa, com a força do povo, e seguirá adiante, construindo um novo país e um outro mundo possível, com a força do pensamento crítico, das forças sociais, políticas e culturais comprometidas com um Brasil e um mundo livres das oligarquias e do monopólio do dinheiro, das armas e da palavra.
A caravana passa, com a força do povo, e segue adiante, fortalecida com as belíssimas vitórias conseguidas, apoiada na massa pobre da população que nunca acreditou nessa mídia, que nunca vacilou na sua decisão de apoiar a construção de um Brasil melhor, mais humano, solidário e democrático. Apoiada na altivez e na dignidade da intelectualidade crítica e independente, que acredita na força das idéias e na força do povo. Já está passando, “nesta avenida, um samba popular”.
Postado por Emir Sader às 18:56